Em recente julgamento de um agravo de instrumento, O Tribunal de Justiça de São Paulo, enfrentou questão sensível e bastante atual: a utilização de holdings familiares como instrumentos de blindagem patrimonial em prejuízo de credores.
A decisão, proferida pela 15ª Câmara de Direito Privado no processo nº 2242709-61.2025.8.26.0000, manteve decisão que havia acolhido incidente de desconsideração da personalidade jurídica e determinado a inclusão de holding patrimonial no polo passivo de execução contra um devedor, ex-sócio de tal holding.
O caso envolveu a constituição de uma sociedade patrimonial por um devedor logo após a contratação de vultosa dívida por uma sociedade da qual tal devedor figurava como sócio e avalista. A holding foi integralizada exclusivamente com bens particulares do devedor, compondo um patrimônio social elevado e estável. Poucos meses depois, todas as cotas foram doadas gratuitamente a descendentes, sem qualquer contraprestação econômica, mas mantendo o instituidor sua posição como administrador da sociedade, com poderes de gestão e usufruto.
A proximidade e sequência temporal: contratação do crédito / integralização da holding com patrimônio pessoal / doação gratuita das cotas, evidenciou, segundo o Tribunal, nítida tentativa de esvaziamento patrimonial com o objetivo de frustrar a execução relativa à dívida contratada.
O Tribunal fundamentou a decisão no artigo 50 do Código Civil, que autoriza a desconsideração da personalidade jurídica em caso de abuso, caracterizado por desvio de finalidade (o uso da PJ para lesar credores ou para atos ilícitos) ou confusão patrimonial (ausência de separação fática entre patrimônios; p.ex., cumprimento repetitivo, pela sociedade, de obrigações do sócio, e vice-versa). A desconsideração inversa, que se caracteriza pelo afastamento da autonomia patrimonial da sociedade, de modo a que seu patrimônio responda por obrigações do sócio, mostrou-se cabível, permitindo que os bens pertencentes à holding respondessem por dívidas pessoais do sócio que a constituiu, tendo restado evidenciado que a sequência de atos foi feita com a intenção de blindagem patrimonial em prejuízo aos credores de boa-fé.
No voto condutor, destacou-se que prevalece a autonomia patrimonial da pessoa jurídica, mas esta não é absoluta, devendo ser mitigada quando utilizada de modo abusivo para encobrir atos fraudulentos.
O Tribunal ressaltou que a criação de holdings familiares é, em princípio, prática legítima de planejamento patrimonial e sucessório, largamente admitida pelo ordenamento. Entretanto, a licitude cessa quando os mecanismos societários são empregados com desvio de finalidade (blindagem para frustrar credores) e elementos de confusão patrimonial. Nesse sentido, a ausência de contraprestação na transferência das cotas, a manutenção do controle societário pelo instituidor e a proximidade temporal entre a contratação da dívida e a constituição da holding foram elementos decisivos para caracterizar o abuso de personalidade jurídica.
O julgado também enfatizou que a proteção dos credores constitui expressão da função social da empresa e da boa-fé objetiva que deve nortear as relações obrigacionais. Permitir que estruturas societárias sejam utilizadas para retirar bens do alcance de credores seria admitir uma ruptura da segurança jurídica e um incentivo a práticas fraudulentas. Ao manter a decisão que incluiu a holding no polo passivo da execução, o Tribunal coibiu a tentativa de blindagem patrimonial abusiva e garantiu a efetividade da tutela jurisdicional.
A importância do acórdão transcende o caso concreto, pois reafirma parâmetros interpretativos sobre o alcance da desconsideração da personalidade jurídica em contextos de planejamento patrimonial: (i) primeiramente, evidencia que o Judiciário está atento à cronologia e à substância dos atos societários, não se limitando à sua forma legal, (ii) em segundo lugar, reforça que a mera alegação de finalidade sucessória não basta para afastar a responsabilização quando os atos praticados revelam desvio de finalidade e confusão patrimonial e, (iii) por fim, a decisão insere-se em linha jurisprudencial que vem fortalecendo a proteção do crédito e reprimindo práticas que, sob o manto da autonomia societária, buscam apenas inviabilizar a satisfação de obrigações.
O precedente reafirma a função instrumental da desconsideração inversa para coibir blindagens abusivas e assegurar a efetividade da tutela executiva, sem demonizar a holding familiar como ferramenta legítima de organização patrimonial e sucessória. O limite está no abuso, tal como positivado no artigo 50 do Código Civil e consolidado pela jurisprudência pátria. Boas práticas no planejamento sucessório, como, por exemplo, a transparência, segregação patrimonial e governança, são essenciais para evitar questionamentos e garantir sua higidez.