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Civil

A Doação Dissimulada de Empréstimo

By outubro 7, 2025No Comments

Em setembro de 2025, o Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial nº 2.154.368/SP, relatado pela Ministra Nancy Andrighi, julgou uma controvérsia que, embora originada de litígio entre ex-cônjuges, alcança questões estruturais do direito civil brasileiro, em especial a simulação relativa e a validade de doação dissimulada de empréstimo. O caso se originou em uma ação de cobrança proposta por ex-marido contra ex-esposa, em que este alegava ter emprestado a ela valores superiores a seis milhões de reais, que seriam destinados à aquisição de um imóvel de alto padrão. A pretensão do autor ex-marido era reaver os valores que dizia ter emprestado.

A demanda foi rejeitada em primeiro grau e confirmada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, que observou a inconsistência da prova apresentada, sobretudo das declarações de imposto de renda, cujo conteúdo, segundo as testemunhas, era definido e manipulado pelo próprio autor. A corte paulista destacou que tais registros não poderiam ser tidos como confiáveis, já que serviam apenas à aparência formal de um negócio inexistente. Em trecho elucidativo, assinalou-se que o que havia não era empréstimo, mas “apenas uma manobra contábil para conferir lastro às declarações de renda, pois a ré não teria condições de adquirir, com o seu patrimônio, um imóvel daquele valor. E, tampouco, de quitar o suposto mútuo”.

No STJ, o ex-marido alegou, entre outras questões, a ausência dos requisitos formais da doação previstos no artigo 541 do Código Civil e a ocorrência de “decisão surpresa”, pois a simulação não teria sido expressamente invocada pela defesa. A relatora refutou ambas as alegações, afirmando que desde a contestação a controvérsia girava em torno da natureza jurídica do negócio, cabendo ao juiz sua adequada qualificação, e que inexiste surpresa quando as provas convergem para outra espécie contratual, afastando a alegação de decisão inesperada.

O ponto mais inovador do acórdão, porém, está na análise da simulação relativa e na validade da doação dissimulada. Conforme reconheceu o tribunal, embora o negócio tivesse sido declarado à Receita Federal como empréstimo pelo ex-marido, na realidade o que ocorreu foi uma doação. Essa dissimulação não se verificou propriamente entre os cônjuges, mas “nas documentações contábeis”, conforme informaçõespelo autor. A decisão foi firme em apontar que ocorreu a simulação relativa, pois o autor declarou à Receita Federal ter realizado empréstimo, enquanto a espécie contratual celebrada era diversa: uma doação de fato.

A questão central residia, então, em saber se a ausência de escritura pública ou instrumento particular de doação inviabilizaria o seu reconhecimento. Em regra, a formalização é necessária, como prevê o artigo 541 do Código Civil. Todavia, o STJ afastou a rigidez formalista, assinalando que exigir a solenidade do artigo 541 do Código Civil, diante da dissimulação, equivaleria a proteger o simulador e prejudicar terceiros, inclusive o Fisco. Assim, prevaleceu o entendimento de que o ordenamento jurídico não pode ser utilizado como instrumento para validar ou legitimar uma conduta contraditória e/ou fraudulenta.

Restaram caracterizados os requisitos materiais da doação: houve transferência patrimonial relevante, enriquecimento da donatária e a intenção de doar. Prova disso é que jamais houve qualquer cobrança durante a constância do casamento ou mesmo após o divórcio, e que, segundo testemunhas, o próprio marido afirmava a terceiros ter “dado” o imóvel à esposa.

Outro ponto relevante tratado na decisão foram os honorários advocatícios, tendo o STJ reformado o entendimento do TJSP, para aplicar o Tema 1076, para estabelecer a fixação sucumbencial em percentual do valor atualizado da causa.

O julgamento, portanto, é paradigmático. Primeiro, porque deixa claro que a simulação relativa não pode ser utilizada como subterfúgio para blindar o simulador, devendo o magistrado reconhecer o negócio jurídico efetivamente praticado, ainda que não atenda integralmente às formalidades legais. Segundo, porque reafirma a prevalência da boa-fé objetiva e da função social do contrato. E, finalmente, pois corrige uma distorção prática na fixação de honorários, alinhando a jurisprudência aos precedentes vinculantes.

O Recurso Especial nº 2.154.368/SP, traz a posição do STJ de que, no conflito entre forma e substância, quando a forma é utilizada de modo desleal, o direito deve privilegiar a substância. Ao afirmar que a doação subsiste, mesmo dissimulada sob o rótulo de empréstimo e as formalidades previstas em lei, a Terceira Turma sinaliza que a boa-fé, a segurança jurídica e o interesse público, inclusive o fiscal, devem prevalecer.